Lélia Pereira da Silva Nunes

Lélia Pereira da Silva Nunes

MEMBRO CORRESPONDENTE
LÉLIA PEREIRA DA SILVA NUNES
Presidente da Academia Catarinense de Letras, ACL.

 

Lélia Pereira da Silva Nunes nasceu em Tubarão, Santa Catarina, em 18 de setembro de 1946 e é cidadã honorária de Florianópolis, onde reside desde 1970. Graduada em Sociologia, pós-graduada em Direito e mestre em Administração Pública, Professora universitária e pesquisadora. Sua escritura abrange crônicas, memoriais e ensaios. Há cinco décadas se dedica à Cultura Catarinense, mais especificamente à cultura açoriana no Sul do Brasil e nos Açores, em Portugal.

É membro titular da Academia Catarinense de Letras, ACL, onde ocupa a Cadeira 26, e em 2024 foi eleita a primeira mulher a presidir essa que é a mais antiga e relevante instituição literária do Estado. Conselheira titular do Conselho Superior da Comissão Nacional de Folclore, Sócia Emérita do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, Membro Honorário da Academia Tubaronense de Letras, ACATUL, SC e Membro Correspondente da Academia de Letras de Balneários Camboriú, ALBC. Pertence à Associação Catarinense de Imprensa/Casa do Jornalista de SC, à Associação de Escritores Portugueses-APE, ao Instituto Histórico da Ilha Terceira, ao Instituto Açoriano de Cultura-IAC, ao Centro de Estudos da História do Atlântico da Madeira/CHAM e ao CEHA – Açores, Portugal. É articulista no Notícias do Dia, de Florianópolis, SC, Diário do Sul, Tubarão, SC, Diário dos Açores, Ponta Delgada, Açores, Portugal, no LusoPresse, de Montreal, Canadá e no Portuguese Times, New Bedford, EUA.

A acadêmica foi condecorada com diversas premiações, entre elas o Prêmio Especial Dakir Polidoro de Jornalismo, 2018, outorgado pela Câmara Municipal de Florianópolis, SC; o Prêmio Côrtes-Rodrigues, 2018, atribuído pelo jornal LusoPresse, de Montreal, Canadá; a Medalha de Mérito Cultural Cruz e Souza, 2019, concedida pelo Conselho Estadual de Cultura, SC, a Medalha Brasileira Folclorista Emérito, outorgada pela Comissão Nacional do Folclore 2019, a Insígnia Autonómica de Reconhecimento, 2022, pela R. A. Açores, Portugal; a Medalha Mérito Educacional, 2022, do CEE; a Medalha Dias Velho, 2023, concedida pelo CMF, Santa Catarina.

Obras

Zumblick, uma história de vida e de arte (1993, 2013), Entre Penas e Pincéis (1998, org.), Os Caminhos do Divino: um olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina (2007, 2010, 2020), Na Esquina das Ilhas (2011 e 2020), Corpo de Ilhas (2018) e Pedra de Toque (2019 e 2020). Presente nas antologias: Viagens, v.1. Ponta Delgada: Letras Lavadas, 2020; Avós: Raízes, Nós, Lisboa: Alma Letras, 2020, Retratos da Pandemia, 2021 e Nas asas do martim-pescador — tributo a Florianópolis — 350 anos, da ACL (2023).

 

Godofredo de Oliveira Neto

Godofredo

MEMBRO CORRESPONDENTE
Titular da Academia Brasileira de Letras, ABL.

 

Godofredo de Oliveira Neto nasceu em Blumenau, em 22 de maio de 1951, cursou os estudos superiores na França, durante os anos da Ditadura militar no Brasil. Graduou- se em Relações Internacionais, pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Paris II (França) e em Letras, pela Universidade de Paris III (França), onde também realizou seu mestrado em Letras.  Possui o título de Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É ainda pós-doutor em pesquisa na Georgetown University, Estados Unidos.
Atualmente, reside no Rio de Janeiro, é Professor do Departamento de Línguas Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ocupou vários cargos técnicos em instituições nacionais e internacionais, e integra diversos grupos de pesquisa em Literatura, dentre os quais o comitê de pesquisadores da Association Archives de la Litérature Latino-américaine des Caraibes et Africaines du XX Siècle, ligado à UNESCO. Presidiu a Comissão de Língua Portuguesa do Ministério da Educação do Brasil e o Conselho Científico do Instituto Internacional de Língua Portuguesa da CPLP, entidades responsáveis pela implementação do novo acordo ortográfico nos países lusófonos.
O escritor dirigiu o departamento de Ensino Superior do Ministério da Educação do Brasil (MEC) entre 2002 e 2005 e foi pró-reitor da UFRJ entre 1990 e 1994.
Seu livro Ana e a Margem do Rio (2002) recebeu o selo de “altamente recomendável”, da Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil, e com o livro Menino Oculto (2005) foi premiado no 48º Prêmio Jabuti.
Godofredo de Oliveira Neto é Membro Titular da cadeira “Barão do Rio Branco” da Academia Carioca de Letras, do PEN Clube do Brasil, da Academia Europeia de Ciências, Letras e Artes (Embaixador para a América Latina), do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e Membro Correspondente da Academia de Letras de Balneário Camboriú, ALBC, Santa Catarina.
Entre outras condecorações, recebeu a Medalha Euclides da Cunha, da Academia Brasileira de Letras e a Medalha Cruz e Sousa, do Estado de Santa Catarina.
Em 2018, foi eleito membro da Academia Catarinense de Letras para ocupar a cadeira 10, cujo patrono é Francisco Antônio Castorino de Farias .
No ano de 2022 Godofredo de Oliveira Neto foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupa a Cadeira 35, sucedendo ao professor Cândido Mendes e se tornando o único imortal da ABL nascido no Estado de Santa Catarina.

Obras

  • Faina de Jurema (1981)
  • O nome e o verbo na construção de São Bernardo (1988)
  • A ficção na realidade em São Bernardo(1990)
  • O bruxo do contestado : romance(1996)
  • Pedaço de Santo (1997)
  • Oleg e os clones (1999)
  • Marcelino Nanmbrá: o Manumisso(2000)
  • Ana e a margem do rio: confissões de uma jovem Nauá (2002)
  • Menino Oculto (2005)
  • Libertinagem & estrela da manhã(2006)
  • Marcelino (2008)
  • Cruz e Sousa: o poeta alforriado (2010)
  • Amores exilados: romance (2011)
  • Secchin: uma vida em letras (2013)
  • A ficcionista (2014)
  • Ilusão e mentira : as histórias de Adamastor e de Lalinha (2014)
  • Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira (2016)
  • Grito (2016)
  • O desenho extraviado de Hieronymus Bosch (2023), publicado anteriormente na França com o título Esquisse (2021).

 

MEIEMBIPE DOS MEUS SONHARES, DESTERRO DOS MEUS CANTARES, FLORIPA DOS MEUS AMORES – uma epopeia catarina.

(*) Teca Mascarenhas

1. MEIEMBIPE DOS MEUS SONHARES,
DESTERRO DOS MEUS CANTARES,
FLORIPA DOS MEUS AMORES — uma epopeia catarina.
houve um tempo em que era outro o fluxo das coisas
quando a natureza se oferecia pródiga e benfazeja
os bichos se irmanavam na partilha da água e das sombras
enquanto o canto dos pássaros suavizava o silêncio
as forças divinas acrisolavam o curso das estrelas
e o futuro insondável das almas

2. o fluir oceânico resfriou a lava do ventre da terra
e milhões de anos engendraram maciços rochosos
inexaurível o vento sul recortou a longeva costa
fazendo eclodir no relevo inconstante da pele
planícies e lagoas
bacias e matas
rios e mangues
dunas e restingas
montanhas e ilhotas e cavernas
dezenas de praias oníricas
e deram à luz essa suntuosa paisagem insular

3. eis que vestígios humanos de passos milenares
esconderam-se em suas entranhas arenosas
santuários erigidos pelos Povos do Sambaqui
—os primogênitos humanos da imaculada orla —
populações litorâneas de pescadores e coletores
artesãos de objetos utilitários e artísticos poliram a pedra
criaram zoólitos e ornamentos de fibras e conchas
forjaram facas e arpões e machados
imprimiram pegadas de cultura sedentária e organizada
e nos legaram marcos históricos chamados sambaquis:
acervo de conchas de seres marinhos artefatos ósseos
e lítios ossadas de peixes e mamíferos e pássaros
altos e amplos monumentos
— agora destruídos ou danificados ou mal preservados
cemitério de crianças mulheres e homens
sagrado relicário dos mortos
onde vigia o fogo-fátuo ou boitatá

4. no tempo em que as águas ainda eram mansas
nos idos dos anos 1300
oriundos da imensa Nação Tupi-guarani
chegaram os ameríndios Carijós
espalharam-se junto ao quebrar das ondas
em diversos agrupamentos de tribos e aldeias
sociedades de pescadores sedentários
povoaram a ilha que chamaram Meiembipe:
— montanha ao longo do mar
aqui elaboraram cosmologia e cosmovisão
e desenvolveram civilização estrutural
em íntima harmonia com fauna e flora calorosas
artífices da arte cerâmica produziram cultura
plantaram e colheram os frutos da terra virgem
veneraram o espírito que se oculta em cada palavra
em cada força do universo e em todo ser vivo
‘difusores da tradição do sol da lua e do sonho’
sulcaram para sempre a face da história catarinense

5. três séculos até o desflorar do éden tupiniquim
com a chegada da primeira comitiva invasora
e o início das relações de escambo e aprendizado
o bandeirante Dias Velho e família
seguido de religiosos da Companhia de Jesus
e centenas de índios aculturados
fundou e impulsionou a freguesia
que denominou Nossa Senhora do Desterro
e em seu louvor erigiu pequena igreja
locus do culto a Deus e das profissões de fé

todavia os hospitaleiros indígenas do povo Carijó
afamado como o melhor gentio da costa
amiúde foram impiedosamente dizimados
— malgrado a luta vã dos missionários jesuítas —
renderam-se à avidez dos corsários por riquezas
pereceram às doenças europeias
aos violentos aprisionamentos portugueses
às vendas como escravos nos Estados emergentes
até se quebrantarem feito cativos nos engenhos
e sucumbirem à infame sina de escravizados em terra própria

enfim cruentas batalhas entre ilhéus e piratas
resultaram na morte trágica do bandeirante desbravador
e o posterior retorno dos familiares e subsistentes
relegou a ilha à um triste cenário de abandono

6. em meados dos anos 1700 a Coroa Portuguesa
criou a Capitania Subalterna de Santa Catarina e
planos de aplacar as mazelas do Arquipélago dos Açores
e garantir o projeto de expansão português
promoveu a imigração de cinco mil acorianos-portugueses
os quais deveriam cumprir os preceitos Régios:
casais em idade reprodutiva e seguidores da religião católica
— oriundas dos Acores desembarcaram no Brasil
as almas que colonizariam a ilha e o litoral catarinense
preencheriam os vazios demográficos
e caracterizariam a identidade étnica da região

porém no novo horizonte viram descumprida
a promessa de distribuição equitativa de terras e bens
dar origem às diferenças legitimadoras de poder
e às desigualdades econômicas e sociais emergentes:
os proprietários comerciantes usurários notáveis letrados
agricultores pescadores artesãos modestos incautos

a diáspora açoriana coincidiu com o ciclo da baleia
e impulsionou os homens para o mar
que aperfeiçoaram a pesca e técnicas de conservação
também se dedicaram à agricultura de subsistência
na organização da produção e do consumo
a vida açoriana envolvia toda a família
e imprimia feições particulares ao original ambiente
com a açorianidade fincando suas raízes
na demarcação simbólica do território
e na reelaboração cultural das tradições

festas e ritos são manifestos nas celebrações
litúrgicas da Igreja Católica Romana: Advento Natal Quaresma
Epifania dos Reis Páscoa Festa do Divino Pentecostes
nas práticas devocionais sincréticas do catolicismo popular:
folias procissões romarias festas de santos padroeiros rezas
ternos de reis novenas ritos de pagamento de promessas
nos eventos socioculturais: língua e falares poesias modas literárias
romanceiros cancioneiros danças culinárias artesanatos festas da tainha
farra do boi cultura da saudade boi de mamão usos e costumes

destarte a cosmologia da Ilha da magia se configura
simbolizada pelo Divino o Boi e a Tainha
e transpassa de seres fantásticos o universo mítico do ilhéu
bruxas lobisomens borboletas maus-olhados boitatás
curupiras fantasmas bem-querências vampiros horas mortas

hoje ativistas descendentes animam seu orgulho
valorizam a identidade cultural translocalizada
e preservam o patrimônio afetivo da alma açoriana
enquanto a ilha abraça novos imigrantes transnacionais
e expande seu repertório multiculturalista

7. a Região Sul foi coberta de sangue de 1893 a 1895
com a Guerra Civil chamada Revolução Federalista
a dividir a jovem República pelos rumos do poder
na fratricida luta armada entre dois grupos opostos
presidida então pelo Marechal Floriano Peixoto
o qual passou aos anais do Brasil como Marechal de Ferro
rubrica da atuação autoritária e truculenta na revolta
que culminou com a derrota do contingente dissidente

de um lado os Republicanos — os pica-paus, pela manutenção
do outro os Federalistas — os maragatos, pela descentralização
cujos confrontos sangrentos dos filhos da mesma pátria-mãe
resultaram na morte de mais de dez mil combatentes
imprimiram marcas indeléveis de violência e crueldade
nas memórias e nos corações dos soldados remanescentes
dos descendentes de todos os revoltosos
e da devastada população sulina
como uma página inescurecível da história nacional

os Federalistas transformaram Nossa Senhora do Desterro
em Governo Provisório desanexado do central
e pela sua posição geográfica estratégica
a Revolução teve o mar e os rios como protagonistas
das batalhas atrozes que colocaram irmãos contra irmãos
e aniquilaram os ideais e as vidas dos militantes
na sua saga persecutória o Marechal de Ferro ordenou
o encarceramento de militares autoridades civis e lideranças locais
nos calabouços da Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim
— a pequena ilha do diabo do povo Tupi
onde foi consumado o massacre de 185 almas desesperadas
sumária e cruelmente enforcadas ou fuziladas
no palco trágico da Chacina de Anhatomirim

quase duas décadas se passaram até que os despojos mortais
fossem encontrados e recebessem um desenlace digno
embora somente alguns desditados puderam ser identificados:
Capitão Luiz Inácio Domingues, Marechal Manuel de Almeida Lobo d’Eça (Barão do Batovi), Coronel Luiz Gomes Caldeira de Andrada, Desembargador Francisco Antonio Vieira Caldas, Juiz de Direito Joaquim Lopes de Oliveira, Manoel Joaquim Telles, Romualdo de Carvalho Barros e Elesbão Pinto da Luz.
o fim da Guerra Civil reduziu grande parte da população
a tão dramática condição de miséria e pavor que a sujeitou
a desprezar Nossa Senhora do Desterro
entronar o Marechal de Ferro
alterar o nome da Capital para Cidade de Floriano
e relegar ao apagamento muitos de nossos mártires
cujos fantasmas ainda assombram a pequena ilha do diabo

8. a Capital de Santa Catarina celebra 350 anos neste 2023
a enigmática Ilha da Magia
a Floripa dos meus amores

quando nasceu vaticinaram os oráculos:
serás ‘um pedacinho de terra perdido no mar’
reinarás majestosa aureolada pelo oceano infinito
e tua beleza dominará paradisíaca
guarapuvus douradas reluzirão nas tuas matas
Laelias purpuratas florescerão nas tuas grutas
Martins-pescadores-verdes adejarão sobre tuas águas
ondas sonoras entoarão cantos nas areias das tuas praias
fauna e flora aqui conviverão em harmonia celestial
— mas teu destino insular te reduzirá a anônima solidão
teu reino será inacessível e despossuído de almas
e nenhum chamamento humano poderá te alcançar

entretanto as Moiras reputaram injusta a profecia
e o fadário da ilha absolutamente alteraram
a se cumprir diverso conforme o desejo das deusas
decretada a morte do isolamento
atravessou o percurso intangível do tempo
— atraídos pelo cheiro do mar vieram povos de ultralonjuras
redes transnacionais de imigrantes
redesenharam as paisagens de infância guardadas nas almas
e na ilha perfilharam criaram raízes alçaram voos
sonharam e concretizaram sonhos de prosperidade
ainda que nem sempre suaves fossem os caminhos
ainda que muitas vezes sangrentas tenham sido as lutas
ainda que dores tornassem mais salgada a aragem do mar
o tempo sempre pode ser arauto de esperança
e anunciar melhores dias de fraternidade para a humanidade

como um regresso à fonte do poema
a vocação acolhedora da Floripa dos meus amores
— onde viveu minha mãe e nasceram meus filhos —
inventa modos contemporâneos de sociabilidade
fundadores de uma universalidade indeclinável
para acatar os deslocamentos humanos pluridirecionais
e elaborar incansavelmente sua memória polifônica
na pulsão dialética da história catarina
aqui na aclamada 10a. Ilha dos Açores

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OBS.: poema publicado na obra Nas asas do martim-pescador – tributo a Florianópolis – 350 anos, composta por acadêmicas e acadêmicos da Academia Catarinense de Letras, ACL, 2023.

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(*) Maria Tereza Fiuza Lima Mascarenhas Passos
Academia Catarinense de Letras, ACL, Cadeira 25.
Academia de Letras de Balneário Camboriú, ALBC, Cadeira 7

Revisão: Sandra Novaes

 

PAIXÕES DE INFÂNCIA

* Eudes Moraes

A nossa idade girava na faixa dos dez a doze anos de idade.

Nos tempos dos primeiros bancos escolares, os meninos se apaixonavam por meninas, que nem sempre sabiam que estavam namorando.

O colégio que estudei era dos mais importante em sua época. Os meninos, em sua maioria, vinham de famílias de classe média alta e ricas. As meninas eram delicadas e lindas.

E o desejo pelo sexo oposto se despertou.

Funcionava assim. No meu caso, menino pobre, bolsista em colégio particular, a timidez e o bulling, não me conferiam o direito da iniciativa da escolha. Os meninos ricos escolhiam e dividiam as meninas.

Lembro-me, como se fosse hoje, que tudo acontecia na hora do recreio, entre mordidas nos sanduíches e goles rápidos nos refrigerantes. Os meninos se encontravam no pátio e dividiam as namoradas. Um deles foi logo dizendo que estava namorando a Silvinha e dois outros contestaram, reclamando para si a mesma namorada. Houve um acordo e o mais forte e persuasivo a levou, restando aos demais novas escolhas. De repente, ocorreu nova divisão e todos foram se acertando. No meu silêncio, vi quando a minha primeira escolha me foi subtraída. Acho que a segunda opção também se foi. A verdade é que acabei ficando com a que sobrou. E assim, transcorriam as conversas:
__ Então, tá! Eu namoro a fulana, você a sicrana… e…

E assim, todos se acertaram e, no final, me disseram: Você fica com a Mariazinha.
__ Tá bom! Concordei.

De vez em quando, alguém errava o nome da sua namorada e saiam na porrada. O bedel levava todos para a diretoria.
—- É que ele roubou a minha namorada! Era a alegação.

O diretor devia se divertir com essas ocorrências!

Quantas vezes, eu também quis trocar a minha e avançar nas namoradas dos outros, mas, bolsistas não podiam se envolver em brigas e nem serem chamados na diretoria.

Essa foi a minha primeira experiência com a paixão. Mas, ninguém se apaixona aos dez anos, dirá você. Puro engano! Se ela é um coisa gostosa que invade o peito, provoca a imaginação, dá uma sensação de prazer e dispara adrenalina, só pode ser paixão. Existe sim, embora tenha sido sonho infantil!

Lembro-me o nome completo da menina que despertou os meus primeiros suspiros de paixão. Claro, que não fui correspondido, mesmo porque ela de nada sabia!

A imaginação é uma área neutra em que tudo é permitido e nada é punido.

Mais tarde, na minha pré-adolescência, eu me encantei com uma prima. Ela era graciosa e quando eu a via desfilando pelas ruas o meu coração sempre batia maus forte. Eu era tímido por ser reprimido pelo meu pai e jamais ousei transparecer esse sentimento, nem para ela. Em todo caso, eu estava bem treinado nessa paixão do faz de conta.

Foi aí que eu senti que precisava trabalhar para ter dinheiro e comprar um presentinho para ela. Pedi para o meu pai fazer uma caixa de engraxar sapatos. Ele relutou um pouco, tentou ver se eu esquecia e diante da minha insistência fabricou o meu instrumento de trabalho. O primeiro dinheiro que ganhei, paguei meu pai em prestações, claro!
Depois, dei algum dinheiro para a minha mãe e comecei a me sentir orgulhoso de mim.

Não resistindo ao impulso do coração juvenil, comprei uma caixinha de pó de arroz, pedi para a vendedora embrulhá-la com papel de presente e uma fita. Eu iria dar para a minha prima, talvez, minha namorada. Sensação gostosa!

Cheguei em casa e não sabia o que fazer com o presente. Fiquei com medo de ser descoberto e do meu pai brigar comigo. Escondi a caixinha embaixo do assoalho da casa e fiquei esperando ter coragem e oportunidade para entregá-la. De vez em quando, quando meus pais saiam, eu a pegava e ensaiava o que eu iria dizer, quando entregasse o presente: — Olha, é pra você ficar mais bonita do que é!

Eu sabia exatamente onde encontrá-la, porque ela sempre se reunia com outras meninas na esquina de casa. Eu ia até o portão e ficava olhando. Elas brincarem de amarelinha. Seus cabelos longos soltos balançavam de um lado para outro. Um dia, eu criei coragem e me aproximei. Estava tremendo. Não podia gaguejar. Não rolou, fraquejei!

O medo foi maior do que a paixão e voltei para casa com a caixinha. Até hoje, ela está escondida embaixo do assoalho da casa, se é que a casa ainda existe e se o pó de arroz resistiu ao tempo!

Hoje compreendo o significado da expressão “pó de arroz”. Se era atribuído aos fracos e medrosos, esse era eu!

Cresci e perdi a conta de quantas paixões e namoros vivi.

Eudes Moraes é da Academia de Letras de Balneário Camboriú e da Academia de Cultura de Curitiba.